Foi um sonho.
Não daqueles de “férias-que-nunca-mais-vou-esquecer”, mas daqueles que acontecem quando fechamos os olhos. Quando dormimos. Mas foi um sonho aflitivo. Sim, como um pesadelo. Estávamos um grupo de amigos numa casa, e perto havia um vulcão, que entrou em erupção. Eu sabia que a lava estava a ir na direcção da casa e que tínhamos que fugir o mais rapidamente possivel. Mas não conseguia convencer ninguém. Apesar dos pedidos insistentes, da urgência, da argumentação…nada. A malta ficava lá, sempre com umas conversas meio estranhas sem grande justificação ou lógica – não fosse isto ser um sonho – e eu em grande agitação, não conseguia convencer ninguém a fugir da lava estava cada vez mais próxima. E não me lembro de mais.
Por vezes os sonhos deixam um lastro no nosso dia. Arrastam-se para as horas mais lúcidas como uma lembrança vaga e imprecisa, mas que está presente. E este fez-me pensar como às vezes sabemos que há aí um vulcão que vai magoar as pessoas de quem gostamos. E que apesar dos nossos esforços, nada conseguimos fazer para impedir isso.
Parece-me que das coisas mais difíceis da vida é ver as pessoas de quem mais gostamos a sofrer. E como se isso não bastasse, é ver que somos impotentes para as tirar desse sofrimento. Como uma mãe , um filho, um amigo, uma namorada, que não conseguem aliviar o sofrimento do outro. É tão difícil vê-los a sofrer.
E isto tudo é muito intrigante, bonito, perigoso e misterioso.
1. Intrigante porque é realmente uma estupidez ver quem gostamos a sofrer. Ver alguém a chorar, magoado, doente, é uma estupidez. Olhar nos olhos a miséria e a pobreza, as violências e injustiças é quase um absurdo. Assistir aos mil e um sofrimentos que a vida nos traz, sem grandes tréguas, é difícil. E intrigante porque muitas dores são provocadas precisamente por quem sofre – pela forma atrapalhada como aprenderam a viver. Talvez não devesse ser assim, mas simplesmente é.
2. Bonito porque significa que estamos ligados. Mas é uma beleza dura e selvagem. Realmente há laços entre nós que nos alimentam e definem, e quando uma parte de alguém sofre, nós também sofremos. Há uma contaminação do coração. Uma parte de nós que é feita de partes dos outros. Bonito porque só sofre quem ama.
3. Perigoso porque achamos que o bem-estar do outro depende de nós.Naturalmente devemos fazer o que conseguimos para ajudar, mas tantas vezes não há muito mais a fazer. Continuamos a achar que devíamos ser capazes de eliminar categoricamente o sofrimento dos nossos pais, amigos, irmãos. Ignoramos arrogantemente o que a vida traz dentro de cada sofrimento.
É que tantas vezes é-nos tão insuportável assistir pacificamente à dor, ao choro, à tristeza de quem gostamos. Queremos eliminar isso de forma definitiva. Mas é ainda mais perigoso quando o que procuramos eliminar é o desconforto que provoca em nós, e não o sofrimento da outra pessoa.
4. Misterioso porque é na medida em que somos capazes de aceitar o sofrimento de quem gostamos, que os ajudamos. É irónico como passamos anos a tentar ajudar alguém, e descobrimos que no momento em que aceitamos a dor como ela é, é precisamente aí que começamos verdadeiramente a ajudar. Aquela carga que depositamos ao lidar com a dor de quem gostamos, não ajuda. Estamos tão amarrados emocionalmente que não temos a distância e o fôlego para libertar. Por isso, ao sermos permeáveis à dor dos que nos são próximos, ao aceitarmos pacificamente o que faz o outro sofrer e a forma como nos faz sentir, aí sim começamos a ajudar. É misterioso porque não há libertação sem aceitação.
Por fim, será que sabemos – como no sonho – quando vem a lava, ou sequer se há lava? Não estou seguro.
Mas apesar disso, há circunstancias em que sabemos que uma pessoa está a sofrer. Mas também sabemos que para conseguir ajudar precisamos de estar no melhor da nossa humanidade. Precisamos de conviver tranquilamente com o sofrimento.
Sabemos também que oportunidades não faltarão.
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