Lamento, mas vou procurar a liberdade

inesperado.org - liberdadeNaquela tarde tomei uma decisão que ia mudar toda a minha vida. De agora em diante, ia apenas fazer o que me apetecia.

Largar as amarras das responsabilidades, dos deveres e das obrigações. Lutar por um ideal maior: a liberdade de poder escolher o que fazer. Poder determinar o futuro, poder decidir o meu rumo! Escolher o que me apetece, sem ninguém me dizer o que fazer. Tinha que viver essa liberdade! Haverá algo maior que a liberdade individual?

Os primeiros tempos foram inebriantes e as possibilidades infinitas. Como uma folha em branco, podia desenhar a minha vida na direcção e na cor que me apetecesse. Podia partir ou ficar. Fazer ou não fazer. Ir por aqui ou por ali. Mas mais importante é que a folha estava em branco e podia escolher o que me apetecesse.

Mas o que fazer em primeiro lugar?
Com tantas possibilidades, torna-se difícil escolher. Mas como os desejos não faltam, dá-se um pequeno passo numa direcção. Não interessa bem a direcção, desde que se dê esse passo, pequenino e decidido. E depois dele vem outro – talvez noutra direcção, talvez não – e de seguida mais um. E esses pequenos passos começam a traçar um caminho.

Mas para quem quer viver tudo o que deseja, um pequeno passo já não basta. É preciso outro, outro e outro. É necessário perseguir essa liberdade. É necessário levar a sério o desejo. Temos que honrar o que queremos. Vamos avançar, vamos!
Dou por mim e já não ando: corro apenas. Passo atrás de passo, rápido rápido, porque não há tempo a perder. Não posso deixar nada de fora, não posso deixar nada por viver. Trata-se da minha vida, trata-se da minha liberdade, trata-se da minha felicidade. Tenho que ser livre de escolher. Sempre.

Chego a um sítio – e sim ele é bom – mas de seguida lanço-me para outro, sem poder parar. Como posso ficar parado, quando o desejo não dorme? O gozo de cada experiência parece diminuir. Mas o desejo só parece aumentar. O que apenas me faz correr mais.
As pessoas e as situações passam, uma depois da outra. Gosto de todas, mas nenhuma me basta. Tenho que continuar, posso perder alguma coisa que aí vem.
O passado já não me chega. Esqueci o sabor dos abraços demorados, das refeições partilhadas, dos prazeres pequenos.
O presente já não me interessa. A minha senda é pelos grandes desejos, pela grande liberdade do homem, e ela virá no futuro, tem que vir.
O futuro já não me motiva. Corro atrás do Sol para nunca o apanhar. Corro atrás de um amanhã que foge sempre de mim.
Tudo passa cada vez mais rápido, e eu continuo a perseguir a minha liberdade.

E eis que por fim, um cansaço de viver se apodera de mim. Já vi o mundo e o mundo já me viu. Já conheci mais pessoas do que me lembro, e já vivi mais histórias do que conseguiria contar. Sei que ainda haveria mais para ver e mais para viver, mas o meu interior desinteressou-se. Tornei-me indiferente, o fogo do meu desejo arrefeceu, e mais que tudo… a minha alegria desapareceu.

Percebi então que durante anos, corri sempre por mim. Para eu exercer a minha liberdade, para eu poder escolher, para eu poder fazer o que me apetecia. Nada mais que a minha vontade me motivou: mais nenhuma causa me apaixonou, mais ninguém me fascinou, mais nada me cativou. Corri apenas por mim e pelos meus desejos, e cheguei ao final sem nada. Percebi que todos os meus passos – curtos, rápidos, ansiosos – afastavam-me do que eu mais procurava. A liberdade que tanto queria apanhar, era uma sombra que sempre fugiria de mim.

Mas neste dia o Sol nasce de novo – e depois de perseguido todo o desejo, depois de fazer tudo o que me apetecia – resta-me apenas uma vontade: poder voltar àquela tarde, e fazer uma escolha diferente.
Não me digam a mim que viver é fazer o que me apetece. Dêem-me antes algo maior que eu próprio, algo mais fundo que a minha liberdade, e partirei de novo. E desta vez a minha alegria não terá fim.

Comments

Respostas de 12 a “Lamento, mas vou procurar a liberdade”
  1. […] # inesperado.org: https://inesperado.org/2014/03/04/anuncio-que-vou-atras-da-liberdade/ […]

  2. Catarina

    É uma experiência rica porque refletida e a conclusão parece muito acertada! A minha liberdade é para me dar! Contudo, sem a experiência de uma liberdade virada para si fica difícil perceber o alcance e a necessidade da doação! Depois de experimentar os frutos “mortais” do egoísmo e do egocentrismo pudemos perceber e desejar sinceramente viver para os outros, e, talvez, só nessa altura, ganhemos a capacidade de sermos verdadeiramente altruístas. Nessa altura, corresponde a um desejo do coração e então todo o ser passa a estar envolvido!
    Também por esta razão é tão importante respeitar a liberdade individual para que se não atrase esse processo de tomada de consciência e de adesão do coração!
    Sempre que surge uma imposição, todo esse processo é interrompido, ao contrário, sempre que há uma sugestão ou uma proposta esse processo é fortalecido e encorajado!
    Gostei muito, fez-me refletir também!

  3. PAF

    Hoje li isto:
    “António cruzou-se com Ana na rua. Estavam fadados a um grande amor. António estava a postar cenas no facebook, Ana estava a percorrer o feed do instagram. Cruzaram-se, mas não se viram. F****-se.”

    Conclusão:
    A nossa liberdade não pode ser “a nossa” individual, senão fará mossa
    A nossa liberdade não deve nos impedir de estarmos atentos aos outros, senão ficaremos presos

  4. Miguel Bandeira

    Fiquei sem palavras! Este tocou fundo. Excelente reflexão, cheia de sabedoria. Acho que encontrar o equilibrio nas nossas vidas entre as coisas que fazemos por nós e aquelas que fazemos pelos outros, ou outra causa maior do que nós, não é nada fácil. Mas precisamos das duas se queremos viver uma vida com sentido e que ao mesmo tempo dê gozo viver. Por isso vale a pena perder tempo a tentar encontrar esse equilíbrio. E nada melhor que ler este texto se temos andado a dedicar demasiado tempo as coisas que começam e acabam em nós mesmos. Obrigado!

  5. Anónimo

    …viagem de Goldmund (em “Narciso e Goldmund” de Hermann Hesse)…

  6. Cinco Estrelas!!!!! Devia ser publicado no jornal maior audiência. E, já agora, no Diário da Republica.

  7. Jeremias Banzé

    Optima foto! Onde é?

  8. “Não me digam a mim que viver é fazer o que me apetece. Dêem-me antes algo maior que eu próprio, algo mais fundo que a minha liberdade, e partirei de novo. E desta vez a minha alegria não terá fim.”
    Linda reflexão esta!
    Muitos de nós define liberdade como fazer o que lhes dá na real gana, passando por cima de tudo e de todos. Mas isso nem de longe significa liberdade, isso é apenas ser prisioneiro daquela parte de nós que nos impede ser quem na verdade somos – o nosso ego – e nos faz viver na maior das ilusões. E quem vive somente a partir do ego não é dono de si próprio, daí nunca poderá viver em liberdade.
    Grata por esta profunda reflexão.
    UM LINDO E IMENSO CÉU AZUL PARA TODOS NÓS

  9. Anónimo

    A linha da liberdade e do compromisso é muito ténue. Também já tive total liberdade para fazer o que queria e quando queria, mas no fim do dia, sentia que faltava sempre algo dentro de mim: um propósito, uma meta, algo ou alguém a quem me dedicar. E foi assim que adoptei o meu cão. A liberdade ainda lá está, mas agora sabe muito melhor.
    :)

    1. lotus811

      eheheheh Desculpe mas deu-me vontade de rir o seu comentário. Eu por acaso adoro animais, não tivesse eu dois cães (porque um deles já se foi devido à idade) quatro gatos. Mas gosto deles não como um fim em si. GOSTO DELES porque sim.
      Porque gosto de pessoas com sentido de humor, o meu melhor sorriso para si e, já agora, para o seu cão.
      E, em tom de brincadeira, neste momento só me apetece dizer BAU, BAU :)

      1. Anónimo

        Áu Áu, rom rom, e miáu para todos, hahahaha! Conseguiram fazer-me rir quando reflectia sobre o mais de meio século de vida, e o menos de meio século de probabilidades, hahaha! Gostei :D

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