Produtivo como um calão

Ninguém gosta de ser chamado preguiçoso.
Ninguém gosta de ser considerado um calão que não faz nada do que devia.

Passamos décadas a ouvir dizer que temos que estudar, que temos que trabalhar, que temos que fazer coisas. O que até faz sentido, porque ficar na cama não paga aquelas facturas em cima da secretária.

No trabalho ensinam-nos a ser produtivos resolvendo muitos problemas e fazendo muitas coisas. E isso faz sentido. Se pelo contrário não fizermos nada, então oferecem-nos um par de patins e um empurrão encosta abaixo. O que também faz sentido.

Mas o problema é quando começamos a achar que tudo na vida são problemas para resolver, e que somos uns inúteis se não estivermos sempre a produzir.
Já não basta ter que fazer aquelas tarefas habituais – pagar facturas, tratar da casa, ir às compras – como tudo o que há para fazer se torna uma tarefa. A vida fica reduzida a uma to do list:
Jantar com a família. Check
Ir beber uma cerveja com um amigo. Check
Ir ao cinema ver aquele filme. Check
Fazer desporto. Check
Ler um bom romance. Check

Enchemos a vida de coisas que em si são óptimas, mas fazemo-las pelas razões erradas E no fim, sentimos apenas um vazio.
Parece que em nós há alguma coisa sempre inquieta, que se alimenta de problemas, e não pára de nos chatear se não estamos a fazer coisas. É aquela comichãozinha que sentimos se chegamos a casa e não fazemos nada de útil. Se passamos o fim de semana sem fazer algum programa fantástico, se andamos 10 minutos a pé sem fazer um telefonema.
inesperado.org produtivo como um calao
Tudo se torna num problema a ser resolvido, numa tarefa a ser feita. Nada nos descansa, nada nos basta. Como dar a volta a isto?
Talvez a resposta esteja na forma como um calão faz as coisas (ou deixa de as fazer). Vamos ver:

O calão vê divertimento, não vê chatices.
O calão encara a vida de uma forma radicalmente diferente: Ele está aqui para desfrutar e para se divertir. Tudo é uma festa, tudo é um divertimento.O que vier depois, resolve-se depois, agora é para curtir.

O calão está tranquilo.
Ele não se pre-ocupa com os problemas que irá ter. Ele está tranquilo como o esquilo. Na boa como a meloa. Ele ri-se dos problemas e anda sereno porque não fica minimamente aflito com o que não controla. O agora é para aproveitar, e se no futuro surgirem contratempos, então no futuro vão-se resolver.

O calão vive bem cada tempo.
O calão não divide a vida em tempos mortos e tempos úteis. Ele sabe que se não tiver tempo morto, acaba ele morto. O calão é especialista em tarefas inúteis. Em coisas que não dão retorno imediato. Fica horas a contemplar um quadro. Passeia sem destino pelas ruas da cidade. Fica noites a conversar com os amigos.

O calão desenrasca-se quando é preciso.
O calão sabe que às vezes não há volta a dar. Que é preciso trabalhar duro e resolver um problema. Mas ele sabe que na hora da verdade, ele fará o que é preciso. Terá a criatividade para resolver o que vier, terá a força para suportar o que acontecer e terá ainda o humor para fazê-lo com alegria.

O calão sabe o que vale.
Ele não precisa de fazer muitas coisas para achar que tem valor. Não precisa de resolver muitos problemas para ser importante ou para achar que é útil. Ele sabe o que vale, independentemente do que faz.

Com certeza que ao longo da vida teremos muitas tarefas pela frente, muitos problemas para resolver e muitas coisas para fazer, mas na altura em que dermos por nós demasiado preocupados com a produtividade… mais vale escolher ser produtivo como um calão.

Comments

Respostas de 8 a “Produtivo como um calão”
  1. eheheheh Gostei de ler. Gostei desta reflexão!
    “O calão sabe o que vale. Ele não precisa de fazer muitas coisas para achar que tem valor. Não precisa de resolver muitos problemas para ser importante ou para achar que é útil. Ele sabe o que vale, independentemente do que faz.” – Grande verdade! Independentemente do que fazemos, do que temos, o que somos de verdade, em essência, manter-se-á inalterável! Abraço a todos e obrigada pela partilha. ♡ ♡ ♡

  2. Porque penso que devemos manifestar o que nos vai na alma, sem qualquer receio de nos identificarmos, que fique claro que o anónimo aqui sou eu. eheheheheh Grande naba que publiquei o comentário sem identificar-me. Ok, também tenho o direito de ser assim de vez em quando. ;)

  3. S

    “Enchemos a vida de coisas que em si são óptimas, mas fazemo-las pelas razões erradas E no fim, sentimos apenas um vazio.” Nem mais a frase diz tudo. Mais um texto fantástico.

  4. Maria Pereira

    cada vez mais tenho mais momentos de calão. gostei.

  5. Ráquel

    Epá grande texto, para mim fez todo o sentido! Eu sou a mulher das check list que ontem fui com a minha gata ao veterinário e, lá está o vício, pensei: O que é que vou levar para fazer enquanto aguardo ser atendida?

  6. Patricia

    Isto faz-me lembrar outra problematica: não conseguir relaxar sem sentimento de culpa
    não comer uma fatia de bolo sem pensar nas calorias
    não ler um livro sem pensar no pó em cima da mesa para limpar
    etc
    já não temos prazer em nada…

  7. Filipa

    Inesperado mas bem a propósito da pseudo-produtividade que tenho andado a dar ao mundo nos último dias. Obrigada pelo «heads up!».

  8. Carla

    Obrigado, identifiquei me totalmente com o texto e estou literalmente numa fase ‘calao’ e de viver descontraidamente sem pensar em ses nem criar problemas que nao existem!

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